quinta-feira, 19 de dezembro de 2013

Florença celebra os 500 anos de "O Príncipe", de Maquiavel

Cidade comemora 500 anos de redação da obra fundadora da ciência política, com uma exposição que explora sua gênese no contexto da época.



Palazzo Vecchio, na cidade italiana de Florença, é visto em 8 de março de 2010
Palazzo Vecchio, na cidade italiana de Florença, é visto em 8 de março de 2010
Roma - Florença comemora, nesta terça-feira, os 500 anos de redação de "O Príncipe", de Maquiavel, obra fundadora da ciência política, com uma exposição que explora sua gênese no contexto da época.
Concluído em 10 de dezembro de 1513 e dedicado a Lorenzo II de Médici, duque de Urbino, o célebre tratado de Nicolau Maquiavel (1469-1527), redigido em apenas dez meses, se tornou, com o passar dos séculos, um substantivo (maquiavelismo) e um adjetivo (maquiavélico), que explica a doutrina de que os fins justificam os meios.
Juntamente com "Pinocchio", de Carlo Collodi, o livrode Maquiavel é o texto de um autor italiano mais traduzido no mundo, afirmou Valdo Spini, presidente do Comitê florentino para as comemorações dos 500 anos da obra do escritor, durante uma coletiva de imprensa realizada em Roma.
"Maquiavel foi o fundador da ciência política, aquele que entendeu primeiro que o poder não foi concedido por Deus, mas que é temporal", explicou Spini, elogiando "a modernidade" do texto do teórico político.
Para homenagear uma das personalidades mais importantes do Renascimento, que foi diplomata e filósofo, foi organizada uma exposição com o lema "O caminho do Príncipe".
O comitê organizador quer desfazer também o estereótipo que foi propagado pelo mundo de que o italiano "é dúbio e oportunista", como sugere o livro, ao desnudar as verdadeiras práticas do poder.
Pertencente a uma família nobre de Florença, Maquiavel, um advogado, esteve a cargo de um escritório público, viajou a várias cortes em França, Alemanha e outras cidades-estado italianas para cumprir missões diplomáticas.
Durante a República Florentina (1494-1512), colaborou com o austero Girolamo Savonarola, antes do retorno ao poder de Lorenzo de Médici, o Magnífico, amante do esplendor.
Acusado de conspiração, ele foi torturado e teve que se exilar em seguida, período em que desenvolveu a atividade literária, ganhando influência crescente.
No entanto, morreu a poucas semanas da queda dos Médici, em 21 de junho de 1527, aos cinquenta e oito anos, sem ter recuperado seu cargo no serviço público, após ter sido chanceler e secretário da Segunda Chancelaria.
"'O Príncipe' é fruto de sua experiência e de suas reflexões", resumiu Spini.
A exposição, que ficará em cartaz até fevereiro de 2014, inclui 90 documentos assinados por Maquiavel, o manuscrito "A Arte da Guerra", assim como cartas codificadas, pinturas e retratos, explicou Silvia Alessandri, vice-diretora da Biblioteca Nacional de Florença.
Maquiavel, que defendeu sempre a República Florentina, dedicou o livro a Lorenzo de Médici, com a esperança de que lhe desse a graça que nunca alcançou.
À Florença daquela época corresponde também o magnífico "David" de Michelangelo, elaborado entre 1501 e 1504, encarregado pelas autoridades republicadas para "representar a resistência ao tirano", explicou Francesca de Luca, responsável do Museu dos Ofícios para o século XVI.
Outro florentino célebre na época era Leonardo da Vinci, que será lembrado através do enorme afresco perdido "La batalla de Anghiari" (Tavola Doria), elaborado entre 1503 e 1504 e descoberto em 2012 atrás de um falso muro no salão do Palazzo Vecchio, sede da prefeitura de Florença.
A pintura, que acreditava-se ter sido destruída em meados do século XVI, será exposta pela primeira vez em Florença antes de voltar ao museu de Tóquio, que a adquiriu sem saber que tinha sido roubada, em virtude de um acordo bilateral.

Fonte: EXAME

quarta-feira, 27 de novembro de 2013

O Crime de Maquiavel

Existem muitas situações de trevas em que, em nome do bem comum, o Príncipe tem de cometer males
Por: JOÃO PEREIRA COUTINHO

Maquiavel: O nome é todo um programa. E "maquiavélico" é adjetivo que dispensa apresentações.
Quando acusamos alguém de maquiavelismo, não precisamos acrescentar mais nada. O sujeito é imoral, hipócrita, mentiroso, potencialmente violento. Uma mistura de Charles Manson com Hannibal Lecter, digamos. Estaremos a ser injustos com o florentino?
Estamos, sim, responde Michael Ignatieff. Ponto prévio: Ignatieff, um excelente filósofo, andou uns tempos perdido (ou será iludido?) na política canadense. Liderou o Partido Liberal. Disputou eleições. Perdeu. Como normalmente acontece com os filósofos que flertam com a política e são desiludidos por ela, regressou agora aos livros.
Em boa hora: na revista "The Atlantic", Ignatieff celebra os 500 anos de "O Príncipe" (escrito em 1513) e oferece uma das mais preciosas explicações para o desconforto que Maquiavel sempre provocou nas gerações posteriores.
Uma empreitada dessas já tinha sido iniciada por Isaiah Berlin no clássico "The Originality of Machiavelli", que Ignatieff obviamente conhece como biógrafo "oficial" de Berlin.
No ensaio, Berlin começava por listar as múltiplas interpretações que foram sendo urdidas sobre a obra e o autor ("um manual para gangsters", disse Leo Strauss; "um humanista angustiado", disse Benedetto Croce; "um homem de gênio", disse Hegel).
E depois, como é usual nos ensaios mais "escolásticos" de Berlin, o próprio acrescentava a sua interpretação a respeito: o que perturba em Maquiavel não é a defesa da dissimulação ou da violência. Ele não foi o primeiro. Não será o último.
O problema é que Maquiavel mostrou a incompatibilidade absoluta entre duas moralidades distintas na conduta de um político: a moralidade pagã e a moralidade cristã.
Eis a "originalidade" de Maquiavel: quem deseja ser um bom cristão, cultivando as virtudes típicas do cristianismo (perdão, benevolência, compaixão etc.), o melhor que tem a fazer é afastar-se da política. Essas virtudes são boas em si mesmas (Maquiavel nunca negou isso, ao contrário do que se imagina). Mas elas são boas na vida privada dos indivíduos, não na defesa da comunidade.
Em política, são as virtudes pagãs (força, disciplina, magnanimidade etc.) que garantem a sobrevivência do Estado.
Ignatieff aceita o essencial dessa explicação. Mas acrescenta um ponto decisivo que está ausente do ensaio de Berlin e que me parece o mais importante: Maquiavel perturba-nos tanto, 500 anos depois, porque existe em nós a intolerável suspeita de que ele pode ter razão.
Vivemos em sociedade. Desfrutamos de um mínimo de ordem. Queremos ser poupados ao crime e à violência de forma a perseguir os nossos interesses ou ambições.
Mas, ao mesmo tempo, recusamos sequer a hipótese de que muitos dos nossos "ganhos civilizacionais" possam ser mantidos por políticos que "sujam as mãos" e não têm insônias com isso.
Cuidado: não falo de políticos que "sujam as mãos" em proveito próprio. Essa hipótese seria intolerável para um patriota como Maquiavel. Falo de qualquer líder, em qualquer democracia, que muitas vezes usa a dissimulação, a mentira ou a brutalidade para que as insônias não nos perturbem a nós.
Ignatieff dá um exemplo, apenas um entre mil: o momento em que Barack Obama invadiu o Paquistão para capturar e matar Bin Laden. O que diriam os Evangelhos dessa operação? E o que dizemos nós, ao saber que o mundo tem um terrorista a menos --o mais temível e procurado deles?
Maquiavel, falando para a Florença do seu tempo, falou também para as Florenças de todos os tempos. E limitou-se a mostrar o "backstage" do nosso teatro cotidiano. No palco, tudo é luz e fantasia. Atrás do palco, existem muitas vezes situações de trevas em que, em nome do bem comum, o Príncipe tem de cometer males inevitáveis.
No fundo, talvez o problema de "O Príncipe" não esteja no texto propriamente dito, mas no efeito que ele teve sobre a imagem virtuosa que gostamos de cultivar sobre nós próprios.
Alguém dizia que os seres humanos nunca suportaram demasiada realidade. O crime de Maquiavel, 500 anos depois, foi ter insultado a nossa vaidade com esse excesso de realidade.

Contribuição: Rodney Eloy

Fonte:FolhadeSaoPaulo

sexta-feira, 22 de novembro de 2013

Vittorio Medioli - As crônicas de Suetônio

PUBLICADO EM 10/11/13 - 03h00
A palavra “maquiavelismo” passou a ser sinônimo de amoralidade na disputa do poder embora Nicolau Maquiavel tenha se guardado de fazer apologia dos métodos que adquiriram fama com a sua obra literária. O diplomata florentino pesquisou profundamente os textos de historiadores romanos, como Tito Lívio e Caio Suetônio Tranqüilo, à procura das condutas e dos meios que levaram os imperadores romanos à conquista de um poder inigualável.

Maquiavel retrata fielmente fatos e circunstâncias de uma época pré-cristã, ainda não alcançada pela revolução moral do Novo Testamento. Portanto, quem perde de vista o contexto histórico dos fatos que ele narra passa a confundi-lo com um demônio, arauto do mal e dos sete pecados capitais. Ledo engano ou, pior, injustiça.

Maquiavel revela friamente os métodos que, num primeiro momento, expandiram o Império Romano, mas que o condenaram, em seguida, à ruína. Tem também o mérito de colocar a nu a infelicidade pessoal que cercava a vida dos poderosos de Roma – condenados a se prostituir, a trair, a mentir, a suprimir parentes e amigos, a viver assombrados por traições e vingança para manter, a qualquer preço, o poder.

O termo “maquiavelismo” por justiça deveria ser substituído por “cesarianismo” ou mais corretamente por “amoralismo”, à luz do ensinamento cristão. Se analisarmos a época dos Césares à luz da doutrina brâmane, aparecerá a deusa Kali, esposa de Shiva, entidade divina encarregada da destruição daquilo que já não tem sentido e precisa dar lugar a algo melhor. Uma força permanente da natureza que possibilita à flor de lótus crescer no meio do lamaçal e à semente encontrar alimento no organismo em decomposição.

Os doze Césares cumpriram com o papel de conduzir e acelerar o fim de uma era, trazendo à tona muito de bom e tudo de ruim que a humanidade tinha à disposição naquela época. Todavia, os imperadores merecem uma enorme consideração pela capacidade de ordenar o Estado, com sistemas que continuam universalmente atuais.

O cientista florentino, por sua vez, morreu no ostracismo e na pobreza por ter revelado os sentimentos abjetos que mais serviram na conquista do poder. Mas Maquiavel teve o mérito incontestável de escancarar o lado obscuro dos governantes, levando-o ao conhecimento de quem quisesse neutralizá-lo.

Pois bem, as crônicas de Suetônio chegaram às livrarias em versão portuguesa, facilitando aos interessados a compreensão do Império Romano, do próprio Maquiavel e até para medir os avanços que a moralidade registrou (na realidade, poucos) desde quando César tombou no senado lamentando: “Até tu, Brutus...”.

E até nós, desembarcando da leitura de Suetônio, sentiremos pulsando nas veias a herança dos imperadores. Vale a pena ler.

Fonte: Otempo

terça-feira, 5 de novembro de 2013

Como dizia Maquiavel, tenha o povo ao seu lado

No ano em que 'O Príncipe' completa 500 anos, especialistas revisitam os conselhos do filósofo


É preciso colocar os óculos do tempo para ler O Príncipe, de Nicolau Maquiavel, o filósofo italiano que há 500 anos escreveu a obra na qual detalha como um governante pode chegar e se manter no poder. Seu famoso tratado completa cinco séculos neste ano - e, em muitos aspectos, continua atual. Os protestos e manifestações que atingiram 353 cidades do País mostram que um de seus principais conselhos aos governantes foi esquecido: estar atento ao povo. "A um príncipe é necessário ter o povo ao seu lado", insistia ele. "De outro modo, ele sucumbirá às adversidades."
Em O Príncipe, Maquiavel falou sobre a ação política - Reprodução


 Descumprir promessas se preciso, agradar ao povo e saber fazer alianças são exemplos dos ditos do autor - os mesmos, por sinal, que o tornaram tão famoso e incompreendido. Cinco séculos atrás, o filósofo alertava para as sutilezas com que essas ações deveriam ser colocadas em prática.
"Maquiavel coloca que política é um território traiçoeiro e que nem sempre uma conduta marcada por princípios rígidos leva aos melhores resultados. O desafio é saber que se está lidando com terreno pantanoso", afirma o cientista político Carlos Ranulfo, professor da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).
Maquiavel, então, compreenderia bem quando políticos fazem alianças com partidos com linha ideológica diferente ou quando oferecem cargos em troca de apoio nas eleições. Mas alertaria: "Os Estados bem governados e os príncipes prudentes sempre cuidaram para não levar o desespero aos grandes e para agradar e contentar o povo, esta que é uma das mais importantes tarefas que incumbem a um soberano".
O que Maquiavel fez foi chamar atenção para a imperfeição do homem, para o jogo de interesses. Apontar como essas nuances se refletem na ação política. "Ele tinha claramente esses dois lados. Tinha preocupação com o interesse público, apesar de destacar os interesses pessoais (dos governantes)", lembra o cientista político Fábio Wanderley Reis, professor emérito da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).
O filósofo conseguiu entender que a continuidade de um governante no poder exigiria mais que alianças e boa retórica e por isso recomendava sensibilidade para reconhecer os anseios do povo. "Os políticos não têm uma noção, essencial em Maquiavel, que é a ação no tempo oportuno. Todos os problemas não resolvidos se acumulam e explodem", pondera o filósofo Roberto Romano, professor de Ética da Unicamp.
Na prática. O Príncipe foi escrito num período monárquico, de reinados hereditários ou obtidos pelas armas. Ao longo dos seus 26 capítulos, Maquiavel fez comentários como: "Os príncipes devem encarregar outros das ações sujeitas à protestação, mas assumir eles próprios aquelas concedentes de graça".
Nada muito diferente do que faz a presidente Dilma Rousseff quando anuncia em rede nacional a redução da conta de luz. Ou do que fez o governador de São Paulo, Geraldo Alckmin, ao falar em "responsabilidade fiscal" e anunciar o corte de gastos depois da onda de protestos.
"As práticas descritas no livro tratam de como conquistar e manter o poder. No caso de Estados laicos e democráticos, como o Brasil, isso é legítimo e importante. Se pegarmos os últimos governantes, talvez o que não tenha seguido o caminho descrito por Maquiavel tenha sido Fernando Collor. Ele usou suas armas para conquistar o poder, mas não soube se manter no cargo", avalia o cientista político Fernando Filgueiras, da Universidade Federal de Minas Gerais.
Ainda assim, talvez seja o caso de se perguntar por que, em tempos de governos democráticos, as semelhanças com os dias atuais sejam tão evidentes. "Os homens não mudaram tanto assim. Mudaram as ordens que constituem a sociedade (empresa, Estado, jogo político, o Exército), mas a ação humana não. Ainda somos pessoas que têm de tomar decisão e agir, que é o cerne da política", avalia o professor Edison Nunes, da PUC-SP.
Para Roberto Romano, no entanto, de Maquiavel continua vivo justamente o que não é dele: "Políticos ainda estão no universo pré-maquiavélico, do apego às técnicas de dominação sem a percepção do que pode ser feito de democracia, de soberania popular". Talvez seja o caso de os políticos, estejam na base ou na oposição, relerem Maquiavel, mas com as lentes do século 21.

Fonte: Unicamp.br

quinta-feira, 26 de setembro de 2013

Teste da janela

Anúncio publicitário "Teste da Janela", do sabão em pó Omo, em 1975: nenhum poder está disposto a ficar exposto ao sol
Anúncio publicitário “Teste da Janela”, do sabão em pó Omo, em 1975: nenhum poder está disposto a ficar exposto ao sol

Cinco séculos antes do surgimento da rede mundial de computadores, Nicolau Maquiavel já sabia que o segredo é um ingrediente essencial do poder. “O imperador é um homem de segredos”, escreveu o florentino em O Príncipe. “Ele não comunica seus desígnios a ninguém, nem colhe opiniões sobre eles”. Desde os tempos de Maquiavel, Estados e segredos cresceram e se multiplicaram, mas continuaram indissociáveis. Nações ergueram gigantescos aparelhos destinados a descobrir e guardar informações sigilosas. Essa tendência culminou nos Estados-policiais surgidos no século 20.

Se um Estado democrático não se apoia centralmente no aparato de inteligência, nem por isso depende menos do segredo. Essa tendência se choca, porém, com a expansão das máquinas administrativas. No ano passado, os Estados Unidos aprovaram 798.618 requisições de acesso de servidores públicos e terceirizados a informações confidenciais, incluindo 287.142 no nível de “altamente secreto”.

O advento da internet deu aos “portadores de segredos” e ao público uma plataforma comum, com a qual Maquiavel sequer sonhou. Esse não é, porém, o único fator a prenunciar o fim da era do segredo. Há 15 anos, vazadores de documentos poderiam simplesmente ser processados e julgados por espionagem, prevaricação ou traição. Hoje, a existência de um ambiente digital global faz com que muitos se vejam como cidadãos de uma comunidade digital global, cujas aspirações de acesso à informação seriam tão ou mais legítimas do que a ideia de pertencimento a um Estado-nação.
Fonte:clirp


quarta-feira, 25 de setembro de 2013

Maquiavel até hoje influencia, mas nunca foi maquiavélico

“Niccollò Machiavelli morreu ontem, deixando-nos na mais profunda miséria”, escreveram ao papa Leão X os filhos do autor de "O Príncipe", que há 500 anos influencia a torto e a direito
por Mauro Santayana publicado 14/09/2013 14:05, última modificação 14/09/2013 13:15
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Deem uma alavanca a um homem e ele moverá o mundo, dizia Arquimedes. Deem a ele uma caneta, e ele mudará o mundo. Ao longo do tempo, houve homens que escreveram em defesa de seus ideais e suas convicções, outros que o fizeram para que não lhes quebrassem os dedos e outros, ainda, para arrumar um dinheirinho a fim de cuidar de sua sobrevivência e de sua família, alugando sua pena a senhores a quem outros alugavam a espada.
A história, no entanto, não pergunta as motivações de quem escreve um livro ou conta uma estória. Ela absorve os livros, e é mudada por eles. O número de pessoas que já morreram em defesa da Bíblia deve ultrapassar o número de letras do livro mais famoso do mundo, e, embora não se possa medir cientificamente a influência da Odisseia na descoberta da América, sabemos que as aventuras de Ulisses povoaram os corações e mentes de muitos dos marujos portugueses e espanhóis que participaram da Grande Travessia, e que Homero poderia ter cantado suas glórias, ou estado entre seus repórteres e cronistas, como Pero Vaz de Caminha e Luís de Camões.
Este mês o mundo está comemorando 500 anos de um grande livro e os cinco séculos que nos separam da época de um escriba singular, que nem sempre assinaria embaixo do que escreveu e acabou virando adjetivo.
Se você, prezado leitor, já foi chamado de astuto, manipulador, maquiavélico, já sabe mais ou menos de quem estamos falando. Embora o termo maquiavélico lembre o vocábulo “maquiar”, ele vem de Nicolau Maquiavel e de seu livro O Príncipe, que escreveu para Lourenço de Médicis, em uma época em que ter amigos poderosos garantia a sobrevivência de artistas, sábios e escritores, e lhes protegia os dentes e o pescoço.
Não vamos nos deter no próprio livro. O escrito é revolucionário para aqueles tempos e mudou radicalmente a forma de ver e de fazer política nos séculos seguintes, influenciando a torto e a direito, à esquerda e à direita, ditadores e libertários, fascistas e nazistas, estrategistas e publicitários. Todavia, como uma obra de encomenda, não corresponde precisamente às ideias do autor, expressas em outras que poucos conhecem e sobreviveram a O Príncipe, como prédios mais baixos se escondem do olhar de quem chega a uma cidade com um grande edifício a marcar seu horizonte.
Mesmo assim, se toda a Renascença fosse uma galeria, poderíamos dizer que O Príncipe, para a filosofia política, corresponderia a um Davi de Michelangelo – não necessariamente a uma Pietá –, ou a uma Santa Ceia de Da Vinci, ou ao que representou, para a astronomia, o aprimoramento do telescópio por Galileu. O importante a dizer é que Nicolau Maquiavel não era maquiavélico, no sentido que se criou para falar de sua obra ou da filosofia contida em seu livro mais conhecido.
Em O Príncipe, Maquiavel examina a conduta de César Bórgia, duque da Emiglia Romanna, filho natural do papa Alexandre VI.
Nicolau Maquiavel foi chanceler, ou seja, administrador do Estado florentino, durante a maior parte de sua vida e amigo de Giovanni de Médicis, um papa com nome de Leão, que não perdoava ninguém, nem mesmo no sentido bíblico. Tendo caído em desgraça, por ter jogado mal, para sobreviver Maquiavel foi obrigado a cuidar de encargo modesto, o de negociador, em nome de empresários de Florença, com os devedores de Pisa.
Apesar de tudo isso, do convívio com os poderosos e de relativa fama em seu tempo, Maquiavel morreu pobre e sem ter ideia de como seu livro O Príncipe e A Arte da Guerra influenciaria o futuro. “Niccollò Machiavelli morreu ontem, deixando-nos na mais profunda miséria”, escreveram os filhos de Maquiavel ao papa Leão X.

terça-feira, 10 de setembro de 2013

Maquiavel para todos os tempos

Vinício Carrilho Martinez (Dr.)
Completamos, em 2013, quinhentos anos da publicação do livro O Príncipe, do pensador e diplomata florentino Nicolau Maquiavel.
Em cinco séculos, Maquiavel foi descrito como amante da paz e da harmonia ou como patriota apaixonado. Do mesmo modo há a análise de um Maquiavel frio e calculista, um engenheiro do poder ou tecnocrata político, mas ainda poderia simplesmente ter enveredado pelo irreal ou, então, ser um grande visionário. Ainda assim seria um grande espelho de sua época para descrever os eventos políticos como outros não teriam sido capazes: um observador do cotidiano, um cronista do empirismo, da prática política.
            Maquiavel seria um homem voltado à razão, a uma prática do poder que suportasse o Estado Moderno nascente. Em suma, o maior teórico da Razão de Estado: “Para Fichte ele é um homem com profundo insight pelas reais forças histórias (ou supra-históricas) que moldam os homens e transformam sua moralidade — em particular, um homem que rejeitava os princípios cristãos em favor dos da razão, da unidade política e da centralização” (Berlin, 2003, p. 22).
            Por isso, não deixa de soar estranha a opinião de que Maquiavel só falasse dos homens de seu tempo, e mais, só para os italianos. Ao contrário, mais parece que queria indicar as bases permanentes da Ciência Política. De outro modo, poderia ser definido como um obcecado pelo passado remoto, pelos clássicos, com o que seu método de análise estaria fora de curso. Para Bacon, entretanto, foi um iluminador da realidade, sem fantasias ou dever-ser — o pai daStaatsräsonRazão de Estado
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segunda-feira, 5 de agosto de 2013

Conheça 20 hábitos para atrair boa sorte no dia a dia (Virtú e Fortuna)

Não basta ter boa sorte se a pessoa não consegue segurar as rédeas da própria vida. Entretanto, se desenvolver suas qualidades pessoais, é possível vencer a má sorte. É o que propõe Nicolau Maquiavel com os conceitos de virtù e fortuna, apresentados principalmente na obra “O Príncipe”, no século 16. Fortuna, a deusa da sorte, boa e má, seria incontrolável, segundo acreditavam os gregos e romanos. O filósofo italiano, contudo, apostava que quando desenvolvida a virtù, ou atributos como força de caráter, coragem e perspicácia, o indivíduo controlaria as forças do destino, superaria as adversidades e obteria êxito em suas ações.


Nesse sentido, saber ler o próprio tempo e perceber corretamente a realidade é a principal atitude para atrair a boa sorte, como explica Dulce Magalhães, Ph.D. em Filosofia pela Universidade Columbia (EUA) e autora do livro “O Foco Define a Sorte” (Integrare Editora). Na acepção da palavra, sorte tem diferentes sentidos, como destino, resultado e fortuna. “Ela é fruto de nossas escolhas, nossa forma de ver a vida, das respostas que somos capazes de arquitetar”, define Dulce. Já o contrário de sorte, o azar, quer dizer acaso. Por isso a boa sorte é definida pelo foco e pela escolha, em oposição ao imprevisível. “A questão fundamental para ter um bom resultado é estabelecer um processo decisório com clareza”, diz ela.
Divulgação
Dulce Magalhães: 'A sorte é fruto de nossas escolhas, nossa forma de ver a vida, das respostas que somos capazes de arquitetar'
“Maquiavel afirmava que se o chefe político tivesse virtù, seria possível para ele prever e vencer a má fortuna”, relembra o professor de filosofia da PUC Antônio Valverde. “O pensar grande, o enxergar longe, é um jeito de afastar o acaso”, completa Valverde.

Esforço e estratégia
Desde criança ouvimos que “a vida é difícil”: dinheiro não dá em árvore, é preciso se esforçar muito para conseguir algo e o que vem fácil vai embora fácil. Pois justamente esta lente de contato nos faz enxergar uma realidade nebulosa. “O paradigma vigente no Brasil é o da escassez”, afirma Dulce. “Estamos habituados ao esforço e não à estratégia. Fazemos mais do mesmo em vez de fazer mais com menos”. Libertar-se deste único modelo, diz ela, é o primeiro passo para ajustar o foco e reconhecer caminhos que nos conduzam diretamente aos nossos propósitos.
Ao definir um caminho aleatoriamente, sem método ou critério, não se tem consciência para onde a vida segue nem de que maneira nosso interior funciona. É fundamental que no processo de interação com o mundo a pessoa se dê conta de qual é o seu papel e o que lhe cabe em cada aspecto da vida. “Só assim poderemos acertar e reproduzir o acerto e, se errarmos, evitar outros erros”.
Sendo a sorte o resultado de qualquer ação, a boa ou a má sorte depende do processo decisório. Por isso, quando se decide tomar uma decisão, é preciso colocá-la em prática. Um exemplo muito comum é aquela pessoa que se dá conta que precisa emagrecer, mas não faz qualquer movimento para perder peso. Não muda a alimentação e continua sedentária. Inevitavelmente ela terá um mau resultado – ou uma má sorte.
Tempo é vida
Impulsionar a boa sorte tem a ver com a estratégia do pensamento. É importante definir o que é prioritário para si, o que traz mais impacto para a sua vida e saber gerenciar o tempo. Há sinônimos que podem clarear o processo: o duo “tempo” e “vida” é um deles. Portanto, pessoas que falam “eu não tenho tempo agora” passam a seguinte mensagem: “Eu não tenho vida para mim agora”.
Dulce dá três dicas essenciais para a melhor gestão do tempo. Primeiro, saiba qual é sua prioridade. “É sem ‘s’, pois não é múltipla. É exatamente o que é preciso fazer agora, o que tem mais impacto e relevância neste instante”, afirma Dulce.
Segundo, aprenda a ter tempo livre. Ao enchermos o dia, transformando-o em um atropelamento constante de tarefas, não permitimos um momento de ócio criativo. “A inovação só vem do ócio criativo e não do trabalho árduo. O ócio é o fomento para a criatividade aparecer”, ela explica.
Em terceiro, coloque o que queremos todos os dias na nossa agenda. Em vez de deixar o lazer só para o fim de semana, é importante ter lazer na vida diariamente, nem que seja por 15 minutos. “Isso garante que todos sejam dias sejam de melhor performance”, ela garante.
Leia também: Como superar a timidez
Com a agenda bem equilibrada, perceba então o que está em ação na sua vida: se é o destino ou o livre-arbítrio. Fazer dar certo tem a ver com o livre-arbítrio, que determina se a porta à sua frente é um beco sem saída ou um novo caminho. Não se pode mudar o destino da porta, está fora de nosso controle, mas sim como passar por ela.
Aprender sobre a sorte que se pode criar é o mote do palestrante motivacional Douglas Miller no livro “A Sorte Como Hábito” (Integrare Editora). Para Miller, pessoas sortudas não esperam as coisas acontecerem; elas têm participação ativa em suas vidas, pois executam ações específicas para conseguir o que querem. Ao longo dos anos, essas ações se tornam hábitos e a boa sorte as acompanha para sempre. Para incorporar tais hábitos no próprio progresso, e impulsionar a boa sorte, o especialista recomenda estes 20 fatores:
1. Saiba o que importa para você: focalize seu tempo e energia nas coisas que são importantes, tanto no trabalho quanto no lazer. 
2. Sinta-se impetuoso e vivo: quando estimulado, você torna-se mais sensível ao que está ao seu redor e vê oportunidades onde os outros não veem
3. Você pode fazer: o sucesso da vida é impulsionado por uma combinação de habilidades e motivação; um alimenta o outro
4. O fracasso é bom: toda derrota não só tem lições a ensinar, como também pode lhe conduzir para um sucesso maior.
5. Conheça a sua capacidade: além do seu atual conjunto de habilidades, medite sobre o que mais você é capaz de fazer; Não perca a curiosidade para buscar novas capacidades.
6. Esteja aberto para o feedback: seja em forma de elogio ou crítica, um retorno é uma dádiva; dedique algum tempo para considerar o feedback e escolher o melhor caminho de ação.
7. Molde sua aprendizagem: não tenha medo de dizer 'Eu não sei'. Ao admitir que desconhece algo, terá curiosidade de ir em busca da resposta e ganhar mais conhecimento.
8. Conserve o frescor: para enxergar seu ambiente de novas maneiras, torne-se um turista do próprio bairro.
9. Transforme o medo em realização: os maiores desafios podem ser superados com uma abordagem passo a passo para você lidar com suas vulnerabilidades.
10. Trabalhe duro: não se trata de suar a camisa. As pessoas de melhor desempenho sabem quando precisam focalizar seus esforços para ter o máximo de resultados.
11. Saiba qual é o seu papel: Tenha clareza sobre o que você acrescenta de positivo ao grupo.
12. Tenha planejamento: defina claramente um objetivo, fixe prazos e estipule os marcos que o levarão a alcançar a meta.
13. Pense sem pensar: reduza a velocidade da sua mente para permitir que seus melhores pensamentos o alcancem.
14. Tenha um horizonte: use os seus sentidos para identificar o que é interessante e motivador para você no futuro.
15. Viva o momento: a espontaneidade é uma parte crucial da vida; rigidez excessiva significa perder oportunidades e diversão.
16. Exerça influência: as pessoas estarão mais dispostas a ser influenciadas por você caso confiem em você e se você tiver credibilidade.
17. Comportamento gera comportamento: desenvolver as habilidades para compreender as pessoas vai capacitá-lo para estabelecer relacionamentos produtivos e felizes
18. Atue em redes interpessoais: seja proativo visando à ampliação de sua rede de contatos; não deixe que seus contatos evaporem.
19. Compartilhe o sucesso: elogios e agradecimentos criam uma atmosfera positiva. Mostre apreciação pelo sucesso dos outros.
20. Identifique oportunidades: alargue o olhar e você verá chances grandiosas; Também crie oportunidades por meio da sua imaginação e dos outros.

terça-feira, 16 de julho de 2013

Os Príncipes do século 21

Inspirados em 'O Príncipe', principal obra de Maquiavel, cientistas políticos avaliam o que os prováveis candidatos à Presidência em 2014 têm, ou não, das qualidades sugeridas pelo filósofo

Lilian Venturini - O Estado de S.Paulo
Simples, duros, levianos, pródigos ou religiosos. Maquiavel destacou alguns adjetivos possíveis de um governante no decorrer de O Príncipe, obra que completa 500 anos em 2012. O louvável, advertiu o filósofo, era o líder ter os melhores. Mas como o desejo é humanamente impossível, sugeriu que ao menos o príncipe fosse "prudente" para saber fugir daquelas qualidades que o fizessem "perder o poder". A pedido do Estado, cientistas políticos avaliaram o que os prováveis candidatos à Presidência da República têm, ou não, daquelas e outras características e como elas interferem na vida política de cada um deles.

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Dilma Rousseff - A chegada de Dilma à Presidência seria o que Maquiavel define por um principado conquistado graças às “armas” de outro - no caso dela, de Lula. Sua vitória deveu-se mais a influência do antecessor do que por sua luz própria, lembram os especialistas. Como o filósofo italiano advertiu, manter-se no poder nessas circunstâncias exige mais esforço.
As virtudes de Dilma estariam no campo da técnica, mas lhe faltariam aquelas da ação política, como carisma e retórica. Além disso, tem dificuldade para costurar alianças e para ser unanimidade dentro do próprio PT - campos em que Lula a ajuda. Mas ela soube tirar proveito da “faxina ética”, do crescimento do consumo e da falta de concorrentes - mais sorte que virtude. A volta da inflação e os protestos, nesse momento, porém, abalam sua gestão. “Dilma luta para criar sua marca e exibir sua própria virtude”, lembra o cientista político Paulo Kramer, da Universidade de Brasília (UNB).
Aécio Neves - O senador Aécio Neves (PSDB) ainda é uma incógnita. A exemplo de Eduardo Campos (PSB), são príncipes hereditários, na definição de Maquiavel. O berço político herdado dos avôs Miguel Arraes e Tancredo Neves pode trazer efeitos positivos, mas é insuficiente para garantir força política.
O carisma e o senso de oportunidade estão entre as virtudes apresentadas até agora pelo tucano, beneficiado também pela ausência de nomes de destaque na oposição. Aos olhos de Maquiavel, no entanto, isso seria pouco. “Ele tem que ter uma agenda e convencer os seus próprios partidários dela”, considera o cientista político Fernando Filgueiras, da UFMG. 
Aécio tem se exposto mais nos últimos meses, mas a impressão ainda é de que está contando demais com a sorte - um risco, no pensamento maquiaveliano -, como desgaste maior de Dilma. “Além de ter uma agenda, ele tem que saber comunicá-la. Para isso, terá que se tornar aparente ao público e se submeter ao julgamento dos cidadãos. É nessas horas que a virtude aparece”, lembra o professor.

Eduardo Campos - As dúvidas que pairam sobre o tucano Aécio Neves são parecidas com as que rodeiam o governador de Pernambuco, Eduardo Campos (PSB). Ainda não está claro como ele pensa e age, embora dê sinais óbvios de suas intenções de chegar à Presidência em 2014 - virtude importante para Maquiavel.
A habilidade para costurar alianças e a inteligência com que usou a proximidade com o governo Dilma estão entre suas principais qualidades, na avaliação dos cientistas políticos. “Parece estar construindo sua força. Até que ponto terá condição de voo solo, é outra conversa”, considera o filósofo Roberto Romano, professor de Ética e Filosofia na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp).

Campos tem sabido tirar proveito da relevância política adquirida pelo Nordeste, seu reduto eleitoral, desde que o PT assumiu o governo federal em 2003. No entanto, ainda não se sabe se terá força para projetar-se nacionalmente, em especial na região Sudeste, onde ainda é pouco conhecido.
Marina Silva - A ex-senadora Marina Silva reúne adjetivos positivos. Transmite pureza, honestidade e a causa ambiental lhe rende apelo público. Juntos, formariam o perfil de um bom líder, mas na política, e na leitura de Maquiavel, podem ser a gestação de sua própria ruína.
No Príncipe, Marina assumiria o papel de Gerolamo Savonarola, ou, como é definido, o profeta desarmado. O monge governou Florença no século 15, ancorado essencialmente em um discurso focado na salvação da humanidade. Segundo Maquiavel, sucumbiu quando sua palavra perdeu força. “A fragilidade da Marina é a mesma de todo aquele que troca a realidade pelo dever ser. Para Maquiavel, a realidade deve ser o cerne da preocupação do príncipe”, avalia o cientista político Edison Nunes, da PUC-SP.
A ausência de uma agenda que some outros temas além do meio ambiente e a articulação confusa do novo partido - nem oposição nem situação - podem tirar de Marina o impacto da votação de 2010. “Falta (a ela) dialogar com o povo. Se não (seu programa) fica no plano teórico e ideal”, diz Roberto Romano.

domingo, 14 de julho de 2013

Como dizia Maquiavel, tenha o povo ao seu lado

Lilian Venturini - O Estado de S.Paulo
É preciso colocar os óculos do tempo para ler O Príncipe, de Nicolau Maquiavel, o filósofo italiano que há 500 anos escreveu a obra na qual detalha como um governante pode chegar e se manter no poder. Seu famoso tratado completa cinco séculos neste ano - e, em muitos aspectos, continua atual. Os protestos e manifestações que atingiram 353 cidades do País mostram que um de seus principais conselhos aos governantes foi esquecido: estar atento ao povo. "A um príncipe é necessário ter o povo ao seu lado", insistia ele. "De outro modo, ele sucumbirá às adversidades."


Em O Príncipe, Maquiavel falou sobre a ação política - Reprodução
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Em O Príncipe, Maquiavel falou sobre a ação política
Descumprir promessas se preciso, agradar ao povo e saber fazer alianças são exemplos dos ditos do autor - os mesmos, por sinal, que o tornaram tão famoso e incompreendido. Cinco séculos atrás, o filósofo alertava para as sutilezas com que essas ações deveriam ser colocadas em prática.
"Maquiavel coloca que política é um território traiçoeiro e que nem sempre uma conduta marcada por princípios rígidos leva aos melhores resultados. O desafio é saber que se está lidando com terreno pantanoso", afirma o cientista político Carlos Ranulfo, professor da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).
Maquiavel, então, compreenderia bem quando políticos fazem alianças com partidos com linha ideológica diferente ou quando oferecem cargos em troca de apoio nas eleições. Mas alertaria: "Os Estados bem governados e os príncipes prudentes sempre cuidaram para não levar o desespero aos grandes e para agradar e contentar o povo, esta que é uma das mais importantes tarefas que incumbem a um soberano".
O que Maquiavel fez foi chamar atenção para a imperfeição do homem, para o jogo de interesses. Apontar como essas nuances se refletem na ação política. "Ele tinha claramente esses dois lados. Tinha preocupação com o interesse público, apesar de destacar os interesses pessoais (dos governantes)", lembra o cientista político Fábio Wanderley Reis, professor emérito da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).
O filósofo conseguiu entender que a continuidade de um governante no poder exigiria mais que alianças e boa retórica e por isso recomendava sensibilidade para reconhecer os anseios do povo. "Os políticos não têm uma noção, essencial em Maquiavel, que é a ação no tempo oportuno. Todos os problemas não resolvidos se acumulam e explodem", pondera o filósofo Roberto Romano, professor de Ética da Unicamp.
Na prática. O Príncipe foi escrito num período monárquico, de reinados hereditários ou obtidos pelas armas. Ao longo dos seus 26 capítulos, Maquiavel fez comentários como: "Os príncipes devem encarregar outros das ações sujeitas à protestação, mas assumir eles próprios aquelas concedentes de graça".
Nada muito diferente do que faz a presidente Dilma Rousseff quando anuncia em rede nacional a redução da conta de luz. Ou do que fez o governador de São Paulo, Geraldo Alckmin, ao falar em "responsabilidade fiscal" e anunciar o corte de gastos depois da onda de protestos.
"As práticas descritas no livro tratam de como conquistar e manter o poder. No caso de Estados laicos e democráticos, como o Brasil, isso é legítimo e importante. Se pegarmos os últimos governantes, talvez o que não tenha seguido o caminho descrito por Maquiavel tenha sido Fernando Collor. Ele usou suas armas para conquistar o poder, mas não soube se manter no cargo", avalia o cientista político Fernando Filgueiras, da Universidade Federal de Minas Gerais.
Ainda assim, talvez seja o caso de se perguntar por que, em tempos de governos democráticos, as semelhanças com os dias atuais sejam tão evidentes. "Os homens não mudaram tanto assim. Mudaram as ordens que constituem a sociedade (empresa, Estado, jogo político, o Exército), mas a ação humana não. Ainda somos pessoas que têm de tomar decisão e agir, que é o cerne da política", avalia o professor Edison Nunes, da PUC-SP.
Para Roberto Romano, no entanto, de Maquiavel continua vivo justamente o que não é dele: "Políticos ainda estão no universo pré-maquiavélico, do apego às técnicas de dominação sem a percepção do que pode ser feito de democracia, de soberania popular". Talvez seja o caso de os políticos, estejam na base ou na oposição, relerem Maquiavel, mas com as lentes do século 21.
Fonte:Estadão

quinta-feira, 6 de junho de 2013

De facínora a defensor da liberdade

Nos últimos 500 anos, a reputação de Maquiavel variou muito. O florentino foi visto como diabólico, mentiroso e adulador de déspotas. Só a partir do século 20 veio à tona a figura de um pensador multifacetado e complexo.

Em 21 de junho de 1527, Nicolau Maquiavel morria aos 58 anos, na miséria, sem recuperar, malgrado os esforços de muitos anos, o crédito dos governantes. Suas duas grandes obras, que lhe poderiam ter tirado do esquecimento, só viriam a público postumamente. O príncipe, cujo rascunho data de 1513, foi publicado em 1532, um ano depois de Comentário sobre a década de Tito Lívio, composta entre 1518 e 1519.
Ao longo da vida, Maquiavel havia criado desafetos, mas também fora querido pelos amigos e pela família. Estes o descrevem, na correspondência que resiste ao tempo, como um homem honesto e confiável, apesar de trocista, e como pai terno e dedicado.
Foi nas décadas seguintes à morte de Maquiavel que O príncipe alcançou notoriedade, embora mais por meio da infâmia do que da fama. O evento político que marca o surgimento do antimaquiavelismo é o Massacre da Noite de São Bartolomeu em 1572, quando os reis católicos ordenam a execução de milhares de protestantes. Daí em diante, Maquiavel passaria a ser visto como o diabólico, o mentiroso, o adulador de déspotas. Ele é quem estaria por trás das ações de Henrique III e da rainha Catarina de Médici, filha de Lorenzo de Médici, a quem O príncipe foi dedicado.
O Massacre da Noite de São Bartolomeu
O Massacre da Noite de São Bartolomeu em 1572, quando a família real francesa ordena a execução de milhares de protestantes, marca o surgimento do antimaquiavelismo, com a associação de seu nome às ações de Henrique III e da rainha Catarina de Médici. A matança é aqui retratada pelo pintor François Dubois (1529-1584).
Essa crença se difundiu depois da circulação do Discours sur les moyens de bien gouverner ou Anti-Machiavel (1576), de Innocent Gentillet, que fazia uma crítica avassaladora, mas caricatural, a O príncipe. Antes disso, o autor huguenote de Le reveille matin des françois (1574) já havia coberto Maquiavel de vitupérios, ao chamá-lo de o “maior malfeitor do mundo”.
Jean Bodin tampouco escapou da onda antimaquiaveliana, ao acusar Maquiavel de promover o ateísmo, louvar a tirania e a amoralidade. Tamanha intensidade dos ataques levou diferentes estudiosos da obra de Maquiavel, entre os quais Hans Baron e Edmond Beame, a sustentar que o antimaquiavelismo aparece como um fenômeno francês no contexto das guerras religiosas.
Jean Bodin acusa Maquiavel de promover o ateísmo, louvar a tirania e a amoralidade
O “Maquiavel assassino” da trilogia Rei Henrique VI, de William Shakespeare, atravessaria as fronteiras da França, alcançando a Inglaterra na crise entre rei e Parlamento, de 1628 a 1642. Exemplo disso é Henry Parker, o principal propagandista do Parlamento, que identificava nas ações de Carlos I “as iníquas políticas do florentino”, baseadas na máxima ‘divide e impera’.
No entanto, esse primeiro antimaquiavelismo, fortemente dependente de uma interpretação ideológica d’O príncipe, ganharia contornos menos nítidos. Começava a emergir a face republicana de Maquiavel.
Deixando O príncipe de lado, James Harrington e Marchamont Nedham introduziram no debate público a obra Comentário sobre a década de Tito Lívio, para defender a ideia de que somente num regime republicano, como a Roma enaltecida por Maquiavel, seria possível ser cidadão e homem livre. Mais do que isso, o modelo romano evidenciaria a necessidade de devoção ao bem comum como modo de permitir a sobrevivência da república. Agora, portanto, convivem no mesmo espaço o Maquiavel facínora d’O príncipe e o Maquiavel patriota do Comentário.
Henrique VI
Maquiavel apareceu em várias peças, no século 16, como uma figura ardilosa e sem escrúpulos. Em Henrique VI, peça em três partes de Shakespeare, ele é mencionado como assassino.
Mas houve ainda quem louvasse um aspecto de Maquiavel até então secundário: seu agudo realismo político. No verbete dedicado ao pensador florentino do Dicionário histórico e crítico (1697), Pierre Bayle nota, não sem ironia, que as reflexões contidas n’O príncipe não configuram um guia de como os governantes devem se comportar, mas o resultado das observações de como reis e papas efetivamente se comportam.
Tendo como professores os próprios príncipes o estudo do mundo, Maquiavel se convertia assim no grande teórico da razão de Estado, para quem a política se define como o conhecimento da arte de preservar o Estado. Esse tipo de análise também permite inferir que ética e política são esferas separadas de ação e, por isso, constituem distintas disciplinas do conhecimento.
No século 19, os teóricos alemães da real politik dirão que a obra de Maquiavel inaugura a modernidade graças a seu relativismo histórico e cientificismo frio. Porém, já no século 18, antes que o surgimento da ciência política estivesse vinculado ao nome de Maquiavel, Montesquieu e Jean-Jacques Rousseau revelaram-se discípulos do florentino, ao endossarem, com maiores ou menores restrições, o ideal republicano de virtude cívica. Em particular, Rousseau não dissociava O príncipe e os Comentários, argumentando que o retrato dos monarcas naquela primeira obra visava a suscitar o ódio contra os tiranos.
O Maquiavel que alcança o século 20 é multifacetado e complexo. Persiste com admirável força o fundador da ciência política, cujo objeto de reflexão é o poder
O Maquiavel que alcança o século 20 é multifacetado e complexo. Persiste com admirável força o fundador da ciência política, cujo objeto de reflexão é o poder, como sustentam distintos pensadores, entre os quais Benedetto Croce e Claude Lefort.
Forte também é o Maquiavel republicano, cujo modelo romano de liberdade seria capaz de fornecer uma alternativa consistente às várias vertentes do liberalismo, conforme preconizam Quentin Skinner e Philip Pettit.
E, surpreendentemente, sobrevive o corruptor da gente de bem, o cínico, o Old Nick, nome que os ingleses dão ao diabo. Representantes mais conhecidos desse primeiro antimaquiavelismo são Leo Strauss e Jacques Maritain, para os quais o pensamento de Maquiavel é essencialmente malévolo e imoral. Maritain, em veia antiquada, chegou ao ponto de afirmar que Maquiavel ensinou príncipes e conquistadores a aplicarem a crueldade sem escrúpulos. Ele seria, em suma, um precursor de Hitler.
Nos últimos 500 anos, Maquiavel foi ‘maquiaveliano’, ‘antimaquiaveliano’ e o mais das vezes ‘maquiavélico’, adquirindo esses termos um sentido relativo e flutuante, conforme a voga. O século 21 já configura novos ‘maquiavéis’ e ‘maquiavelismos’: o democrata, o pagão, o religioso. Ao que parece, Maquiavel e suas obras continuarão a repor o enigma. Mas felizmente podemos falar de Maquiavel sem ofender sua memória.


Eunice Ostrensky
Departamento de Ciência Política
Universidade de São Paulo