quarta-feira, 27 de novembro de 2013

O Crime de Maquiavel

Existem muitas situações de trevas em que, em nome do bem comum, o Príncipe tem de cometer males
Por: JOÃO PEREIRA COUTINHO

Maquiavel: O nome é todo um programa. E "maquiavélico" é adjetivo que dispensa apresentações.
Quando acusamos alguém de maquiavelismo, não precisamos acrescentar mais nada. O sujeito é imoral, hipócrita, mentiroso, potencialmente violento. Uma mistura de Charles Manson com Hannibal Lecter, digamos. Estaremos a ser injustos com o florentino?
Estamos, sim, responde Michael Ignatieff. Ponto prévio: Ignatieff, um excelente filósofo, andou uns tempos perdido (ou será iludido?) na política canadense. Liderou o Partido Liberal. Disputou eleições. Perdeu. Como normalmente acontece com os filósofos que flertam com a política e são desiludidos por ela, regressou agora aos livros.
Em boa hora: na revista "The Atlantic", Ignatieff celebra os 500 anos de "O Príncipe" (escrito em 1513) e oferece uma das mais preciosas explicações para o desconforto que Maquiavel sempre provocou nas gerações posteriores.
Uma empreitada dessas já tinha sido iniciada por Isaiah Berlin no clássico "The Originality of Machiavelli", que Ignatieff obviamente conhece como biógrafo "oficial" de Berlin.
No ensaio, Berlin começava por listar as múltiplas interpretações que foram sendo urdidas sobre a obra e o autor ("um manual para gangsters", disse Leo Strauss; "um humanista angustiado", disse Benedetto Croce; "um homem de gênio", disse Hegel).
E depois, como é usual nos ensaios mais "escolásticos" de Berlin, o próprio acrescentava a sua interpretação a respeito: o que perturba em Maquiavel não é a defesa da dissimulação ou da violência. Ele não foi o primeiro. Não será o último.
O problema é que Maquiavel mostrou a incompatibilidade absoluta entre duas moralidades distintas na conduta de um político: a moralidade pagã e a moralidade cristã.
Eis a "originalidade" de Maquiavel: quem deseja ser um bom cristão, cultivando as virtudes típicas do cristianismo (perdão, benevolência, compaixão etc.), o melhor que tem a fazer é afastar-se da política. Essas virtudes são boas em si mesmas (Maquiavel nunca negou isso, ao contrário do que se imagina). Mas elas são boas na vida privada dos indivíduos, não na defesa da comunidade.
Em política, são as virtudes pagãs (força, disciplina, magnanimidade etc.) que garantem a sobrevivência do Estado.
Ignatieff aceita o essencial dessa explicação. Mas acrescenta um ponto decisivo que está ausente do ensaio de Berlin e que me parece o mais importante: Maquiavel perturba-nos tanto, 500 anos depois, porque existe em nós a intolerável suspeita de que ele pode ter razão.
Vivemos em sociedade. Desfrutamos de um mínimo de ordem. Queremos ser poupados ao crime e à violência de forma a perseguir os nossos interesses ou ambições.
Mas, ao mesmo tempo, recusamos sequer a hipótese de que muitos dos nossos "ganhos civilizacionais" possam ser mantidos por políticos que "sujam as mãos" e não têm insônias com isso.
Cuidado: não falo de políticos que "sujam as mãos" em proveito próprio. Essa hipótese seria intolerável para um patriota como Maquiavel. Falo de qualquer líder, em qualquer democracia, que muitas vezes usa a dissimulação, a mentira ou a brutalidade para que as insônias não nos perturbem a nós.
Ignatieff dá um exemplo, apenas um entre mil: o momento em que Barack Obama invadiu o Paquistão para capturar e matar Bin Laden. O que diriam os Evangelhos dessa operação? E o que dizemos nós, ao saber que o mundo tem um terrorista a menos --o mais temível e procurado deles?
Maquiavel, falando para a Florença do seu tempo, falou também para as Florenças de todos os tempos. E limitou-se a mostrar o "backstage" do nosso teatro cotidiano. No palco, tudo é luz e fantasia. Atrás do palco, existem muitas vezes situações de trevas em que, em nome do bem comum, o Príncipe tem de cometer males inevitáveis.
No fundo, talvez o problema de "O Príncipe" não esteja no texto propriamente dito, mas no efeito que ele teve sobre a imagem virtuosa que gostamos de cultivar sobre nós próprios.
Alguém dizia que os seres humanos nunca suportaram demasiada realidade. O crime de Maquiavel, 500 anos depois, foi ter insultado a nossa vaidade com esse excesso de realidade.

Contribuição: Rodney Eloy

Fonte:FolhadeSaoPaulo

sexta-feira, 22 de novembro de 2013

Vittorio Medioli - As crônicas de Suetônio

PUBLICADO EM 10/11/13 - 03h00
A palavra “maquiavelismo” passou a ser sinônimo de amoralidade na disputa do poder embora Nicolau Maquiavel tenha se guardado de fazer apologia dos métodos que adquiriram fama com a sua obra literária. O diplomata florentino pesquisou profundamente os textos de historiadores romanos, como Tito Lívio e Caio Suetônio Tranqüilo, à procura das condutas e dos meios que levaram os imperadores romanos à conquista de um poder inigualável.

Maquiavel retrata fielmente fatos e circunstâncias de uma época pré-cristã, ainda não alcançada pela revolução moral do Novo Testamento. Portanto, quem perde de vista o contexto histórico dos fatos que ele narra passa a confundi-lo com um demônio, arauto do mal e dos sete pecados capitais. Ledo engano ou, pior, injustiça.

Maquiavel revela friamente os métodos que, num primeiro momento, expandiram o Império Romano, mas que o condenaram, em seguida, à ruína. Tem também o mérito de colocar a nu a infelicidade pessoal que cercava a vida dos poderosos de Roma – condenados a se prostituir, a trair, a mentir, a suprimir parentes e amigos, a viver assombrados por traições e vingança para manter, a qualquer preço, o poder.

O termo “maquiavelismo” por justiça deveria ser substituído por “cesarianismo” ou mais corretamente por “amoralismo”, à luz do ensinamento cristão. Se analisarmos a época dos Césares à luz da doutrina brâmane, aparecerá a deusa Kali, esposa de Shiva, entidade divina encarregada da destruição daquilo que já não tem sentido e precisa dar lugar a algo melhor. Uma força permanente da natureza que possibilita à flor de lótus crescer no meio do lamaçal e à semente encontrar alimento no organismo em decomposição.

Os doze Césares cumpriram com o papel de conduzir e acelerar o fim de uma era, trazendo à tona muito de bom e tudo de ruim que a humanidade tinha à disposição naquela época. Todavia, os imperadores merecem uma enorme consideração pela capacidade de ordenar o Estado, com sistemas que continuam universalmente atuais.

O cientista florentino, por sua vez, morreu no ostracismo e na pobreza por ter revelado os sentimentos abjetos que mais serviram na conquista do poder. Mas Maquiavel teve o mérito incontestável de escancarar o lado obscuro dos governantes, levando-o ao conhecimento de quem quisesse neutralizá-lo.

Pois bem, as crônicas de Suetônio chegaram às livrarias em versão portuguesa, facilitando aos interessados a compreensão do Império Romano, do próprio Maquiavel e até para medir os avanços que a moralidade registrou (na realidade, poucos) desde quando César tombou no senado lamentando: “Até tu, Brutus...”.

E até nós, desembarcando da leitura de Suetônio, sentiremos pulsando nas veias a herança dos imperadores. Vale a pena ler.

Fonte: Otempo

terça-feira, 5 de novembro de 2013

Como dizia Maquiavel, tenha o povo ao seu lado

No ano em que 'O Príncipe' completa 500 anos, especialistas revisitam os conselhos do filósofo


É preciso colocar os óculos do tempo para ler O Príncipe, de Nicolau Maquiavel, o filósofo italiano que há 500 anos escreveu a obra na qual detalha como um governante pode chegar e se manter no poder. Seu famoso tratado completa cinco séculos neste ano - e, em muitos aspectos, continua atual. Os protestos e manifestações que atingiram 353 cidades do País mostram que um de seus principais conselhos aos governantes foi esquecido: estar atento ao povo. "A um príncipe é necessário ter o povo ao seu lado", insistia ele. "De outro modo, ele sucumbirá às adversidades."
Em O Príncipe, Maquiavel falou sobre a ação política - Reprodução


 Descumprir promessas se preciso, agradar ao povo e saber fazer alianças são exemplos dos ditos do autor - os mesmos, por sinal, que o tornaram tão famoso e incompreendido. Cinco séculos atrás, o filósofo alertava para as sutilezas com que essas ações deveriam ser colocadas em prática.
"Maquiavel coloca que política é um território traiçoeiro e que nem sempre uma conduta marcada por princípios rígidos leva aos melhores resultados. O desafio é saber que se está lidando com terreno pantanoso", afirma o cientista político Carlos Ranulfo, professor da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).
Maquiavel, então, compreenderia bem quando políticos fazem alianças com partidos com linha ideológica diferente ou quando oferecem cargos em troca de apoio nas eleições. Mas alertaria: "Os Estados bem governados e os príncipes prudentes sempre cuidaram para não levar o desespero aos grandes e para agradar e contentar o povo, esta que é uma das mais importantes tarefas que incumbem a um soberano".
O que Maquiavel fez foi chamar atenção para a imperfeição do homem, para o jogo de interesses. Apontar como essas nuances se refletem na ação política. "Ele tinha claramente esses dois lados. Tinha preocupação com o interesse público, apesar de destacar os interesses pessoais (dos governantes)", lembra o cientista político Fábio Wanderley Reis, professor emérito da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).
O filósofo conseguiu entender que a continuidade de um governante no poder exigiria mais que alianças e boa retórica e por isso recomendava sensibilidade para reconhecer os anseios do povo. "Os políticos não têm uma noção, essencial em Maquiavel, que é a ação no tempo oportuno. Todos os problemas não resolvidos se acumulam e explodem", pondera o filósofo Roberto Romano, professor de Ética da Unicamp.
Na prática. O Príncipe foi escrito num período monárquico, de reinados hereditários ou obtidos pelas armas. Ao longo dos seus 26 capítulos, Maquiavel fez comentários como: "Os príncipes devem encarregar outros das ações sujeitas à protestação, mas assumir eles próprios aquelas concedentes de graça".
Nada muito diferente do que faz a presidente Dilma Rousseff quando anuncia em rede nacional a redução da conta de luz. Ou do que fez o governador de São Paulo, Geraldo Alckmin, ao falar em "responsabilidade fiscal" e anunciar o corte de gastos depois da onda de protestos.
"As práticas descritas no livro tratam de como conquistar e manter o poder. No caso de Estados laicos e democráticos, como o Brasil, isso é legítimo e importante. Se pegarmos os últimos governantes, talvez o que não tenha seguido o caminho descrito por Maquiavel tenha sido Fernando Collor. Ele usou suas armas para conquistar o poder, mas não soube se manter no cargo", avalia o cientista político Fernando Filgueiras, da Universidade Federal de Minas Gerais.
Ainda assim, talvez seja o caso de se perguntar por que, em tempos de governos democráticos, as semelhanças com os dias atuais sejam tão evidentes. "Os homens não mudaram tanto assim. Mudaram as ordens que constituem a sociedade (empresa, Estado, jogo político, o Exército), mas a ação humana não. Ainda somos pessoas que têm de tomar decisão e agir, que é o cerne da política", avalia o professor Edison Nunes, da PUC-SP.
Para Roberto Romano, no entanto, de Maquiavel continua vivo justamente o que não é dele: "Políticos ainda estão no universo pré-maquiavélico, do apego às técnicas de dominação sem a percepção do que pode ser feito de democracia, de soberania popular". Talvez seja o caso de os políticos, estejam na base ou na oposição, relerem Maquiavel, mas com as lentes do século 21.

Fonte: Unicamp.br